João Isaque Ladeira in DN (Madeira)
'Reles, Non Verba'
Data: 26-02-2007
"Naquele tempo, ao cair da tarde, Jesus disse aos seus discípulos: "Passemos à outra margem do lago". Em seguida, os homens afastaram-se da multidão, meteram-se no barco e levaram Jesus consigo. Pouco depois, levantou-se uma grande tempestade com ondas tão altas e poderosas que enchiam a barca de água. Jesus seguia à popa e dormia serenamente, com a cabeça reclinada sobre uma almofada. Os homens começaram a ficar assustados, foram ter com Ele, acordaram-nO e disseram aflitos: "Mestre, não te importas que a gente morra, aqui, no meio desta tormenta?". Então, Jesus levantou-se, ergueu os braços e ordenou ao mar que ficasse calmo. Naquele instante, o vento cessou e fez-se grande bonança. Depois disse para os discípulos: "Porque estais tão assustados, homens de pouca fé?". Eles ficaram cheios de temor e diziam uns para os outros: "Quem é este homem, que até o vento e o mar lhe obedecem?". (S. Marcos 4 35-41) . Não há dúvida que estes episódios antigos é que eram bons, acabavam sempre bem. Isto agora está tudo mudado..., está tudo muito diferente. Para já, não se vê ninguém andar de barco, é tudo de carro..., e os pescadores também já não entram nestas histórias, quem os quiser ver, agora, é no Sindicato, a jogar às cartas. O próprio mar não é o que era, já não obedece como obedecia, lá foi o tempo. Hoje em dia, quem acompanha o Mestre, são os Secretários, Engenheiros, Arquitectos e outros entendidos em obras, mais os seus Conselheiros e os Assessores, um ou outro Empreiteiro, tudo gente de alta competência. Quando passa uma tempestade, metem-se todos em quatro ou cinco carros pretos e lá vão eles, embalados, logo de manhãzinha cedo, sem ninguém ver. Não falam, vão em silêncio, apreensivos, vão preocupados..., até que as viaturas param, de repente, num desvio da estrada. "Passemos para o outro lado...", ouve-se dizer o Secretário, em voz alta, quando já todos tinham saído dos automóveis. "Dali, do Miradouro é que se vê bem", acrescentou. Foi então que puderam contemplar a dimensão da catástrofe. Em baixo, numa curva do calhau, a Marina que haviam construído lá, imponente e magnífica, tinha sido, mais uma vez, fustigada pela força devastadora das ondas. Ao largo, a poucos metros da costa, flutuavam os derradeiros despojos do moderno complexo marítimo, portas de cabinas, cadeiras, vigas de madeira..., e uma imagem de Santa Ingrata, a padroeira das obras infelizes, que também apareceu ali sem ninguém saber porquê. Foi então que um dos Assessores, voltando-se para o Mestre, perguntou: "Mas que força é esta, senhor ? Quem é que tem um poder destes? Até parece que é maior que o nosso..., o que é que o povo não vai dizer, quando vir isto?". O Mestre sorriu, com um sorriso amarelo, voltou-se para os seus discípulos e disse: "Porque vos assustais, homens de pouca fé? Quem vos autorizou a invocar o nome do povo em vão? O povo é meu, não tem nada a dizer..., o povo cala-se, e bem caladinho. E, cá para nós, o melhor é isso mesmo, é ficar calado. Faz-se como os romanos, eles é que eram um povo culto, um povo superior..., eles é que sabiam. Em situações destas, os romanos só costumavam dizer: Reles, non verba..., mais palavras, para quê?".